Leia o livro O ALIENISTA em 13 partes no blog e entenda a Itaguaí de Machado de Assis
O
Blog Política de Itaguaí publicará a Obra de Machado de Assis, "O
Alienista". Publicado em 1882, quando aparece incorporado ao volume Papéis
Avulsos, havia sido publicado previamente em A Estação
(Rio de Janeiro), de 15 de outubro de 1881 a 15 de março
de 1882. O texto agora, será publicado no Blog Política de Itaguaí, em 13 partes, respeitando os 13
capítulos originais do livro.
O Alienista - Machado de Assis
LEIA:
CAPÍTULO I - DE COMO ITAGUAÍ GANHOU UMA CASA DE
ORATES
As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos
remotos vivera ali um certo médico, o Dr. Simão Bacamarte, filho da nobreza da
terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas. Estudara em Coimbra
e Pádua. Aos trinta e quatro anos regressou ao Brasil, não podendo el-rei
alcançar dele que ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou em Lisboa,
expedindo os negócios da monarquia.
—A ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu
emprego único; Itaguaí é o meu universo.
Dito isso, meteu-se em Itaguaí, e entregou-se de
corpo e alma ao estudo da ciência, alternando as curas com as leituras, e
demonstrando os teoremas com cataplasmas. Aos quarenta anos casou com D. Evarista
da Costa e Mascarenhas, senhora de vinte e cinco anos, viúva de um juiz de
fora, e não bonita nem simpática. Um dos tios dele, caçador de pacas perante o Eterno, e não menos
franco, admirou-se de semelhante escolha e disse-lho. Simão Bacamarte
explicou-lhe que D. Evarista reunia condições fisiológicas e anatômicas de
primeira ordem, digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso, e
excelente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes.
Se além dessas prendas,—únicas dignas da preocupação de um sábio, D. Evarista
era mal composta de feições, longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus, porquanto
não corria o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação
exclusiva, miúda e vulgar da consorte.
D. Evarista mentiu às esperanças do Dr. Bacamarte,
não lhe deu filhos robustos nem mofinos. A índole natural da ciência é a
longanimidade; o nosso médico esperou três anos, depois quatro, depois cinco.
Ao cabo desse tempo fez um estudo profundo da matéria, releu todos os escritores
árabes e outros, que trouxera para Itaguaí, enviou consultas às universidades
italianas e alemãs, e acabou por aconselhar à mulher um regime alimentício
especial. A ilustre dama, nutrida exclusivamente com a bela carne de porco de
Itaguaí, não atendeu às admoestações do esposo; e à sua
resistência,—explicável, mas inqualificável,— devemos a total extinção da
dinastia dos Bacamartes.
Mas a ciência tem o inefável dom de curar todas as
mágoas; o nosso médico mergulhou inteiramente no estudo e na prática da
medicina. Foi então que um dos recantos desta lhe chamou especialmente a atenção,—o
recanto psíquico, o exame de patologia cerebral. Não havia na colônia, e ainda
no reino, uma só autoridade em semelhante matéria, mal explorada, ou quase
inexplorada. Simão Bacamarte compreendeu que a ciência lusitana, e
particularmente a brasileira, podia cobrir-se de "louros imarcescíveis", — expressão usada
por ele mesmo, mas em um arroubo de intimidade doméstica; exteriormente era
modesto, segundo convém aos sabedores.
—A saúde da alma, bradou ele, é a ocupação mais
digna do médico.
—Do verdadeiro médico, emendou Crispim Soares,
boticário da vila, e um dos seus amigos e comensais.
A vereança de Itaguaí, entre outros pecados de que
é arguida pelos cronistas, tinha o de não fazer caso dos dementes. Assim é que
cada louco furioso era trancado em uma alcova, na própria casa, e, não curado,
mas descurado, até que a morte o vinha defraudar do benefício da vida; os
mansos andavam à solta pela rua. Simão Bacamarte entendeu desde logo reformar
tão ruim costume; pediu licença à Câmara para agasalhar e tratar no edifício
que ia construir todos os loucos de Itaguaí, e das demais vilas e cidades,
mediante um estipêndio, que a Câmara lhe daria quando a família do enfermo o
não pudesse fazer. A proposta excitou a curiosidade de toda a vila, e encontrou
grande resistência, tão certo é que dificilmente se desarraigam hábitos
absurdos, ou ainda maus. A ideia de meter os loucos na mesma casa, vivendo em
comum, pareceu em si mesma sintoma de demência e não faltou quem o insinuasse à
própria mulher do médico.
—Olhe, D. Evarista, disse-lhe o Padre Lopes,
vigário do lugar, veja se seu marido dá um passeio ao Rio de Janeiro. Isso de
estudar sempre, sempre, não é bom, vira o juízo.
D. Evarista ficou aterrada. Foi ter com o marido,
disse-lhe "que estava com desejos", um principalmente, o de vir ao
Rio de Janeiro e comer tudo o que a ele lhe parecesse adequado a certo fim. Mas
aquele grande homem, com a rara sagacidade que o distinguia, penetrou a
intenção da esposa e redarguiu-lhe sorrindo que não tivesse medo. Dali foi à Câmara,
onde os vereadores debatiam a proposta, e defendeu-a com tanta eloquência, que a maioria resolveu
autorizá-lo ao que pedira, votando ao mesmo tempo um imposto destinado a
subsidiar o tratamento, alojamento e mantimento dos doidos pobres. A matéria do
imposto não foi fácil achá-la; tudo estava tributado em Itaguaí. Depois de
longos estudos, assentou-se em permitir o uso de dois penachos nos cavalos dos
enterros. Quem quisesse emplumar os cavalos de um coche mortuário pagaria dois tostões à Câmara,
repetindo-se tantas vezes esta quantia quantas fossem as horas decorridas entre
a do falecimento e a da última bênção na sepultura. O escrivão perdeu-se nos
cálculos aritméticos do rendimento possível da nova taxa; e um dos vereadores, que
não acreditava na empresa do médico, pediu que se relevasse o escrivão de um
trabalho inútil.
— Os cálculos não são precisos, disse ele, porque o
Dr. Bacamarte não arranja nada. Quem é que viu agora meter todos os doidos
dentro da mesma casa?
Enganava-se o digno magistrado; o médico arranjou
tudo. Uma vez empossado da licença começou logo a construir a casa. Era na Rua Nova,
a mais bela rua de Itaguaí naquele tempo; tinha cinquenta janelas por lado, um
pátio no centro, e numerosos cubículos para os hóspedes. Como fosse grande
arabista, achou no Corão que Maomé declara veneráveis os doidos, pela
consideração de que Alá lhes tira o juízo para que não pequem. A ideia
pareceu-lhe bonita e profunda, e ele a fez gravar no frontispício da casa; mas,
como tinha medo ao vigário, e por tabela ao bispo, atribuiu o pensamento a
Benedito VIII, merecendo com essa fraude aliás pia, que o Padre Lopes lhe
contasse, ao almoço, a vida daquele pontífice eminente.
A Casa Verde foi o nome dado ao asilo, por alusão à
cor das janelas, que pela primeira vez apareciam verdes em Itaguaí.
Inaugurou-se com imensa pompa; de todas as vilas e povoações próximas, e até
remotas, e da própria cidade do Rio de Janeiro, correu gente para assistir às cerimônias,
que duraram sete dias. Muitos dementes já estavam recolhidos; e os parentes
tiveram ocasião de ver o carinho paternal e a caridade cristã com que eles iam
ser tratados. D. Evarista, contentíssima com a glória do marido, vestiu-se
luxuosamente, cobriu-se de jóias, flores e sedas. Ela foi uma verdadeira rainha
naqueles dias memoráveis; ninguém deixou de ir visitá-la duas e três vezes,
apesar dos costumes caseiros e recatados do século, e não só a cortejavam como
a louvavam; porquanto,—e este fato é um documento altamente honroso para a
sociedade do tempo, —porquanto viam nela a feliz esposa de um alto espírito, de
um varão ilustre, e, se lhe tinham inveja, era a santa e nobre inveja dos
admiradores.
Ao cabo de sete dias expiraram as festas públicas;
Itaguaí, tinha finalmente uma casa de orates.
LEIA EM BREVE O CAPÍTULO II.
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