O Alienista - Capítulo II - Por Machado de Assis
O
Blog Política de Itaguaí publicará a Obra de Machado de Assis, "O
Alienista". Publicado em 1882, quando aparece incorporado ao volume Papéis
Avulsos, havia sido publicado previamente em A Estação
(Rio de Janeiro), de 15 de outubro de 1881 a 15 de março
de 1882. O texto agora, será publicado no Blog Política de Itaguaí, em 13 partes, respeitando os 13
capítulos originais do livro.
O Alienista - Machado de Assis
CAPÍTULO II - TORRENTES
DE LOUCOS
Três dias depois, numa
expansão íntima com o boticário Crispim Soares, desvendou o alienista o
mistério do seu coração.
— A caridade, Sr. Soares,
entra decerto no meu procedimento, mas entra como tempero, como o sal das
coisas, que é assim que interpreto o dito de São Paulo aos Coríntios: "Se
eu conhecer quanto se pode saber, e não tiver caridade, não sou nada". O
principal nesta minha obra da Casa Verde é estudar profundamente a loucura, os
seus diversos graus, classificar-lhe os casos, descobrir enfim a causa do
fenômeno e o remédio universal. Este é o mistério do meu coração. Creio que com
isto presto um bom serviço à humanidade.
— Um excelente serviço,
corrigiu o boticário.
— Sem este asilo,
continuou o alienista, pouco poderia fazer; ele dá-me, porém, muito maior campo
aos meus estudos.
— Muito maior,
acrescentou o outro.
E tinha razão. De todas
as vilas e arraiais vizinhos afluíam loucos à Casa Verde. Eram furiosos, eram
mansos, eram monomaníacos, era toda a família dos deserdados do espírito. Ao
cabo de quatro meses, a Casa Verde era uma povoação. Não bastaram os primeiros
cubículos; mandou-se anexar uma galeria de mais trinta e sete. O Padre Lopes confessou
que não imaginara a existência de tantos doidos no mundo, e menos ainda o
inexplicável de alguns casos. Um, por exemplo, um rapaz bronco e vilão, que
todos os dias, depois do almoço, fazia regularmente um discurso acadêmico,
ornado de tropos, de antíteses, de apóstrofes, com seus recamos de grego e
latim, e suas borlas de Cícero, Apuleio e Tertuliano. O vigário não queria
acabar de crer. Quê! um rapaz que ele vira, três meses antes, jogando peteca na
rua!
— Não digo que não,
respondia-lhe o alienista; mas a verdade é o que Vossa Reverendíssima está
vendo. Isto é todos os dias.
— Quanto a mim, tornou o
vigário, só se pode explicar pela confusão das línguas na torre de Babel,
segundo nos conta a Escritura; provavelmente, confundidas antigamente as
línguas, é fácil trocá-las agora, desde que a razão não trabalhe...
— Essa pode ser, com
efeito, a explicação divina do fenômeno, concordou o alienista, depois de
refletir um instante, mas não é impossível que haja também alguma razão humana,
e puramente científica, e disso trato...
— Vá que seja, e fico
ansioso. Realmente!
Os loucos por amor eram
três ou quatro, mas só dois espantavam pelo curioso do delírio. O primeiro, um
Falcão, rapaz de vinte e cinco anos, supunha-se estrela-d’alva, abria os braços
e alargava as pernas, para dar-lhes certa feição de raios, e ficava assim horas
esquecidas a perguntar se o sol já tinha saído para ele recolher-se. O outro
andava sempre, sempre, sempre, à roda das salas ou do pátio, ao longo dos corredores,
à procura do fim do mundo. Era um desgraçado, a quem a mulher deixou por seguir
um peralvilho. Mal descobrira a fuga, armou-se de uma garrucha, e saiu-lhes no
encalço; achou-os duas horas depois, ao pé de uma lagoa, matou-os a ambos com
os maiores requintes de crueldade.
O ciúme satisfez-se, mas
o vingado estava louco. E então começou aquela ânsia de ir ao fim do mundo à
cata dos fugitivos.
A mania das grandezas
tinha exemplares notáveis. O mais notável era um pobre-diabo, filho de um
algibebe, que narrava às paredes ( porque não olhava nunca para nenhuma pessoa
) toda a sua genealogia, que era esta:
— Deus engendrou um ovo,
o ovo engendrou a espada, a espada engendrou Davi, Davi engendrou a púrpura, a
púrpura engendrou o duque, o duque engendrou o marquês, o marquês engendrou o
conde, que sou eu. Dava uma pancada na testa, um estalo com os dedos, e repetia
cinco, seis vezes seguidas:
— Deus engendrou um ovo,
o ovo, etc. Outro da mesma espécie era um escrivão, que se vendia por mordomo do
rei; outro era um boiadeiro de Minas, cuja mania era distribuir boiadas a toda
a gente, dava trezentas cabeças a um, seiscentas a outro, mil e duzentas a
outro, e não acabava mais. Não falo dos casos de monomania religiosa; apenas
citarei um sujeito que, chamando-se João de Deus, dizia agora ser o deus João,
e prometia o reino dos céus a quem o adorasse, e as penas do inferno aos
outros; e depois desse, o licenciado Garcia, que não dizia nada, porque
imaginava que no dia em que chegasse a proferir uma só palavra, todas as
estrelas se despegariam do céu e abrasariam a terra; tal era o poder que
recebera de Deus.
Assim o escrevia ele no
papel que o alienista lhe mandava dar, menos por caridade do que por interesse
científico. Que, na verdade, a paciência do alienista era ainda mais
extraordinária do que todas as manias hospedadas na Casa Verde; nada menos que assombrosa.
Simão Bacamarte começou por organizar um pessoal de administração; e, aceitando
essa idéia ao boticário Crispim Soares, aceitou-lhe também dois sobrinhos, a
quem incumbiu da execução de um regimento que lhes deu, aprovado pela Câmara,
da distribuição da comida e da roupa, e assim também da escrita, etc. Era o
melhor que podia fazer, para somente cuidar do seu ofício.— A Casa Verde, disse
ele ao vigário, é agora uma espécie de mundo, em que há o governo temporal e o
governo espiritual. E o Padre Lopes ria deste pio trocado,— e acrescentava,— com
o único fim de dizer também uma chalaça: — Deixe estar, deixe estar, que hei de
mandá-lo denunciar ao papa.
Uma vez desonerado da
administração, o alienista procedeu a uma vasta classificação dos seus
enfermos. Dividiu-os primeiramente em duas classes principais: os furiosos e os
mansos; daí passou às subclasses, monomanias, delírios, alucinações diversas.
Isto feito, começou um
estudo aturado e contínuo; analisava os hábitos de cada louco, as horas de
acesso, as aversões, as simpatias, as palavras, os gestos, as tendências;
inquiria da vida dos enfermos, profissão, costumes, circunstâncias da revelação
mórbida, acidentes da infância e da mocidade, doenças de outra espécie,
antecedentes na família, uma devassa, enfim, como a não faria o mais atilado corregedor.
E cada dia notava uma observação nova, uma descoberta interessante, um fenômeno
extraordinário. Ao mesmo tempo estudava o melhor regímen, as substâncias
medicamentosas, os meios curativos e os meios paliativos, não só os que vinham
nos seus amados árabes, como os que ele mesmo descobria, à força de sagacidade
e paciência.
Ora, todo esse trabalho
levava-lhe o melhor e o mais do tempo. Mal dormia e mal comia; e, ainda
comendo, era como se trabalhasse, porque ora interrogava um texto antigo, ora
ruminava uma questão, e ia muitas vezes de um cabo a outro do jantar sem dizer
uma só palavra a D. Evarista.
LEIA EM BREVE O CAPÍTULO III
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